Acções do Documento
ICARUS - Robótica para Busca & Salvamento (Revista da Marinha)
Decorreu no passado mês de julho no Alfeite, a demonstração final da componente marítima do projeto ICARUS - Integrated Components for Assisted Rescue and Unmanned Search Operations.
A demonstração decorreu durante a edição deste ano do exercício REX (Robotics EXercise), promovido pelo Centro de Investigação Naval (CINAV) da Marinha Portuguesa. Este exercício é uma oportunidade não só para realizar testes e recolher dados para os projetos em curso no CINAV, mas também para abrir a Marinha a Universidades, Centros de Investigação e Empresas que queiram colaborar e testar ou demonstrar tecnologia com aplicação marítima ou naval. Ao longo das últimas três edições do REX têm sido testados alguns protótipos que permitiram chegar aos resultados do projeto ICARUS demonstrados este ano.
O ICARUS é um projecto de Investigação & Desenvolvimento financiado pelo 7º Programa Quadro da União Europeia, numa iniciativa denominada unmanned search and rescue solutions. A motivação próxima para esta iniciativa teve origem numa série de catástrofes naturais que tiveram efeitos devastadores quer em termos de sofrimento e perda de vidas humanas quer em termos económicos. Estamos a falar dos terramotos em Aquila (Itália) em 2009 e no Haiti em 2010, e dos tsunamis no Índico em 2004 e no Japão em 2011.
Em todos estes casos houve um número muito elevado de pessoas afectadas, e as equipas de busca & salvamento correram grandes riscos devido à possibilidade de derrocadas, réplicas, ou até contaminação química e nuclear. Nestes cenários é cada vez mais frequente a utilização de ferramentas robóticas, quer pelas capacidades únicas que podem ter (capacidade de explorar pequenas entradas subterrâneas, capacidade de operar em ambientes contaminados), quer pelo facto de não exigirem que as equipas de socorro corram riscos desnecessários. No entanto, apesar dos avanços impressionantes dos últimos anos, e de haver equipas com muita experiência em robótica para busca & salvamento (como a da Profª Robin Murphy da Texas A&M University) há ainda um longo caminho a percorrer até que haja soluções práticas, disponíveis para serem utilizadas em grande escala em operações de busca & salvamento. E é para fazer esse caminho que a União Europeia decidiu financiar projectos de investigação e desenvolvimento nesta área.
O projecto ICARUS é liderado pela Academia Militar Belga, e conta com 24 parceiros europeus, com perícias únicas e complementares. Na fase inicial foram estudados vários cenários em que a utilização de robótica podia trazer mais-valias significativas, e o projecto foi dividido em duas componentes, a terrestre e a marítima, cada uma com um cenário de referência.
A componente terrestre dedica-se sobretudo a busca & salvamento urbano, tendo por base situações de terramotos em zonas habitadas, onde é necessário procurar sobreviventes entre escombros de edifícios. Essas operações usam veículos ligeiros com capacidade para passar em zonas muito confinadas e irregulares, e veículos pesados para a remoção de obstáculos. Os desafios nestes casos consistem em construir sistemas capazes de se movimentarem em ambientes muito acidentados e com más comunicações, fazendo mapas do que vão encontrando e recolhendo a maior quantidade de informação possível. Para tal, há parceiros que são peritos em sistemas de mapeamento e na reconstrução do cenário em ambiente de realidade virtual, como o Instituto de Máquinas e Matemática (IMM) de Varsóvia. Há também vários parceiros peritos no desenvolvimento de sensores ópticos avançados, como a Universidades de Vienna e de Neuchatel, que estão a melhorar a capacidade de detectar e distinguir corpos humanos em ambientes complexos.
A componente marítima dedica-se sobretudo a busca & salvamento em cenários de catástrofes com um elevado número de vítimas, conhecidos como cenários de “mass rescue”. Para além de cenários de tsunamis, esta situação pode ocorrer em casos de grandes e súbitas cheias, ou acidentes com navios de cruzeiro. Este último cenário ganhou muita visibilidade já depois do projecto ICARUS ter sido aprovado, com o acidente do navio de cruzeiro COSTA CONCORDIA em 2012. Nesse caso, felizmente, o número de vítimas mortais foi reduzido dada a grande proximidade de terra, o bom tempo, e a ausência de ameaças químicas ou de fogo a bordo. No entanto, ficou bem patente que acidentes desta magnitude podem ocorrer e ter consequências dramáticas. Por isso, o cenário de referência para a componente marítima do projecto ICARUS passou a ser um acidente com um grande navio de passageiros. A escolha foi também influenciada pelos parceiros portugueses já que, dado o tráfego crescente de navios de cruzeiro entre nós, em particular em Lisboa, aumenta a possibilidade de tal situação ocorrer perto da nossa costa. Para o cenário marítimo, embora tenham sido estudadas várias alternativas, acabou por se centrar o trabalho em dois tipos de plataformas: dois USV (Unmanned Surface Vehicles) de médio porte, com bastantes sensores e capacidade de manobra para procurar vítimas, e um USV de pequeno porte, lançado a partir dos veículos maiores, para transportar uma balsa até junto das vítimas.
A complementar os veículos terrestres e marítimos, alguns dos parceiros do projecto ICARUS dedicaram-se a diversas plaformas UAV (Unamnned Aerial Vehicles) que são usadas em ambos os cenários. Os veículos aéreos serão, normalmente, os primeiros a chegar ao local do acidente, tendo por isso a missão primordial de fazer um levantamento rápido da situação, identificando alterações morfológicas, vítimas e perigos para as equipas de salvamento. Há basicamente dois tipos de UAV's no projecto ICARUS. Por um lado, a Universidade Técnica de Zurique contribuiu com um UAV de asa fixa de grande endurance, com painéis solares que lhe permitam voar por longos perídos de tempo, tendo já atingido voos de 72 horas. Por outro lado, alguns outros parceiros, como a ASCAMM espanhola desenvolveram UAV's multimotores para auxiliarem o guiamento dos veículos de superfície e nalguns casos dispensar meios salva-vidas às vítimas.
Mas concentremo-nos no cenário marítimo onde o CINAV teve um papel primordial, juntamente com os outros dois parceiros portugueses, o INESC TEC e a ESRI-Portugal. O INESC TEC é um centro de investigação e desenvolvimento sediado no Porto que congrega investigadores de várias instituições do norte do país. Neste projecto participaram investigadores da Universidade do Porto e do Instituto Politécnico do Porto para desenvolver veículos de superfície e respectivos sensores e sistemas de comando e controlo, e para colaborar no ambiente de realidade virtual usado para treino de operadores. A ESRI-Portugal, para além de fornecer serviços GIS (Geographic Information Systems) que fazem dela uma empresa de referência na área, coordenou os testes e as demonstrações.
A Marinha Portuguesa esteve fortemente empenhada neste que foi o primeiro grande projecto europeu com a participação do seu Centro de Investigação (CINAV). O interesse por esta área decorre das responsabilidades que a Marinha tem em coordenar a busca & salvamento marítimo numa vasta área do Atlântico Norte. Para tal, a Marinha mantém em permanente funcionamento o seu Centro de Coordenação de Busca & Salvamento em Oeiras (MRCC - Maritime Rescue Coordination Center Lisbon), e mantêm um dispositivo de meios disponíveis e preposicionados para efectuarem missões conhecidas pelo seu acrónimo inglês SAR-Search & Rescue. A experiência adquirida nestas tarefas permitiu ao CINAV empenhar docentes da Escola Naval (muitos deles com experiência no MRCC, em Capitanias, ou em navios empenhados em missões SAR) e outros oficiais de diversos organismos para fazer um estudo do problema, definir requisitos, definir cenários e exercícios, sugerir soluções técnicas, e validar as soluções encontradas. A participação de oficiais e operadores responsáveis pelo MRCC foi particularmente apreciada pelas equipas que desenvolveram os protótipos, pois contribuiu muito para um melhor conhecimento do problema e para as soluções que acabaram por ser desenvolvidas. O CINAV participou também como consultor no desenvolvimento dos pequenos USV’s, sobretudo com a colaboração de alguns docentes que são Engenheiros Construtores Navais, mas o principal contributo foi na realização dos testes, quer destes veículos, quer dos veículos maiores de onde eram lançados. Entre estes veículos maiores, é de destacar o U-Ranger, fabricado pela empresa italiana Calzoni e instrumentado pelo centro NATO-CMRE de La Spezia. Este veículo é capaz de velocidades que podem atingir os 40 nós, e a velocidades mais baixas consegue operar em condições de mar bastante adversas, dispondo de uma suite invejável de sensores. Mas para que todos estes meios conseguissem interagir de forma harmoniosa, e para que não fosse necessário uma multitude de consolas e operadores, o projecto ICARUS teve que desenvolver uma consola única de operação, uma rede robusta e auto-contida de comunicações, e foi necessário utilizar um único protocolo de comando e controlo que todos os intervenientes se compreendessem. Mais uma vez o CINAV esteve fortemente empenhado na tarefa de normalização de protocolos, fazendo um esforço para que fossem adoptadas, nalguns casos com adaptações, normas em uso na NATO. Para tal organizou alguns workshops sobre estes temas, e empenhou um dos seus oficiais numa tese de doutoramento sobre modelos de referência para comando e controlo de múltiplos veículos autónomos. O CINAV realizou ainda algum trabalho exploratório, envolvendo pessoal do destacamento de mergulhadores sapadores e docentes e alunos finalistas da Escola Naval, no sentido de utilizar UUV’s (Unmanned Underwater Vehicles) com sonares laterais a varrer a superfície para auxiliar na busca de náufragos.
E assim chegámos à demonstração final da componente marítima do projecto ICARUS, no Alfeite. O cenário proposto consistia em ter um incêndio (possivelmente libertando materiais tóxicos) num navio de passageiros no rio Tejo. O navio em causa foi a U.A.M. ZÊZERE, da Direcção de Transportes da Marinha, e uma granada de fumo simulou o incêndio. Como consequência do incêndio vários passageiros cairam ao rio. Neste caso os passageiros foram jovens investigadores da Universidade do Porto e vários mergulhadores da Marinha que para além de simularem “vítimas” garantiram a segurança dos outros náufragos. Um observador em terra deu o alarme (num caso real os equipamentos de bordo também o fariam de forma automática), e foi activado o sistema de busca & salvamento. O UAV solar de asa fixa levantou voo imediatamente, obteve as primeiras imagens do acidente, e manteve-se a sobrevoar a área durante todo o exercício, enviando imagens aéreas em tempo real. O segundo meio a chegar à área foi o Multicopter-UAV, que dispunha de uma câmara capaz de identificar náufragos individuais, e lançar um colete salva-vidas. Num caso real o colete auto-insufla-se quando entra em contacto com a água, mas neste caso o “náufrago” insuflou-o manualmente. Finalmente chegaram os dois USV: o U-Ranger da Calezoni, e um catamarã do INESC-TEC, ambos com pequenos USV porta-balsas, a que chamámos UCAP’s (Unmanned CAPsules). Os sensores dos veículos maiores localizaram os náufragos (havia 3 grupos, com diferentes números de pessoas), e mantendo uma distância de segurança, lançaram as UCAP. De facto, para além de intimidante, é perigoso fazer uma aproximação em modo automático a um náufrago usando um veículo pesado, que acidentalmente o podia ferir gravemente. As UCAP’s, que são leves e usam um sistema de propulsão com jacto de água, para não causar ferimentos, aproximaram-se então dos náufragos para que estes pudessem actuar o sistema de enchimento da balsa, embora este pudesse ser activado remotamente caso fosse necessário.
Aproxima-se assim do seu término este projecto de investigação & desenvolvimento que contribui directamente para o aumento da segurança de quem anda no Mar, tendo permitido ao CINAV fortalecer os seus laços de cooperação nacional e internacional, estabelecendo-se ainda como Universidade de referência no domínio do Mar.
Por Vítor Lobo
*Professor da Escola Naval.
Diretor do CINAV
cinav@marinha.pt
Revista da Marinha, outubro de 2015